Grupo Boticário pela Equidade Racial

A importância de criar um espaço que acolhe nossas inseguranças e nos traz forças e amor necessários para continuar.
30 de março de 2022 - Por Stefania Magalhães
post-13

Quando olho para o futuro, eu vejo mulheres. É muito nítido para mim o quão imensurável é a potência feminina, e como essas constatações fazem ainda mais sentido quando eu penso em mulheres como eu, mulheres da pele preta.

Nascer negra neste mundo já é algo revolucionário.

Com a cor da minha pele já vem uma intensa carga histórica, presunções e uma reação até inconsciente da sociedade, quando não completamente proposital. Mas não chegamos munidas para uma luta já certa de existir e empoderadas de quem somos. Porque quem somos vai além da nossa cor. Construímos quem somos ao longo da vida – como todas as pessoas, com características únicas, experiências e aquela autoconsciência que a maturidade vai nos presenteando. Então existe um choque, um gap, um hiato por ainda não estarmos preparadas. O tempo corre diferente para nós. Pois quanto antes nos amamos e aprendemos sobre o quê e o porquê nos cerca, antes nos tornamos livres. Autoestima e conhecimento.

Eu nasci e cresci em uma família maravilhosa, onde a minha cor, o meu cabelo e todas as minhas características sempre foram celebradas e valorizadas como algo belo. Assim como a minha inteligência e criatividade. Talvez faça diferença contar que sou a mais velha de três irmãs e as minhas irmãs são brancas, minha caçula inclusive é loura de olhos verdes. Sou uma das únicas pessoas negras na minha família. Eu sempre soube do meu valor, da minha beleza e capacidade de ser e fazer o que eu quiser. A minha autoestima foi muito bem cuidada dentro de casa, apesar do mundo lá fora me contar uma história diferente, desde muito cedo e repetidamente.

Eu aprendi a lidar com o desconforto do paradoxo.

Me acostumei a ser a única pessoa negra na grande maioria dos lugares que ocupei: no balé, nas aulas de inglês, nos intercâmbios, na escola, na universidade. Venho de uma realidade privilegiada no Brasil e dentro dela eu convivi com pouquíssimas pessoas parecidas comigo. Além desse recorte extremamente pessoal, faço parte de uma geração que cresceu sem referências negras na mídia e em posições de inspiração, quem dirá referências femininas negras (alô baixinhos). Uma geração sem representatividade e sem consciência da importância dela.

Não me enxergava nas revistas, na televisão e nem nas pessoas à minha volta. Me lembro desde muito cedo de conviver com uma sensação de não-lugar. As pessoas se referiam a mim como “morena” ou “mulata”, mas não negra. Sou uma mulher preta da pele clara, com traços finos. Colorismo. Hoje, vejo o quanto isso também me afastou de ocupar quem sou mais cedo.

O não-pertencimento é solitário e por si só já é um professor.

Lembra o que falei antes sobre autoestima e conhecimento? A minha autoestima, tão bem construída desde cedo, foi atacada a cada passo do caminho, mas sobreviveu entre muitos arranhões. Porém, o conhecimento sobre racismo estrutural, a crueldade de suas sutilezas e a consciência do impacto não só na minha vida, mas na sociedade, é uma jornada relativamente nova para mim.

Me lembro uma vez na faculdade quando um professor querido de Ética me fez uma pergunta pessoal sobre racismo. Meu rosto esquentou, minha voz ficou trêmula e respondi algo genérico que mencionava classe social. Penso com carinho nessa menina, acolho o que ela sentiu e entendo que ela ainda estava longe de estar preparada para responder com consciência, apesar das incontáveis situações que possam ter cruzado a sua mente naquele momento. Eu ainda não conseguia elaborar sobre e também não tinha noção do impacto em minha vida profissional futura. Esse aprendizado veio com o tempo e com o meu envolvimento ativo em buscar vozes negras. Outras narrativas da história, narrativas únicas, pessoais e profissionais, para além da dor, narrativas de sucesso, narrativas poderosas.

A história que escrevo parte da minha perspectiva e mostra a pluralidade em que vivemos.

Mas também fala um pouco sobre como, independente da trajetória da mulher negra, compartilhamos sentimentos e situações muito parecidas desde pequenas. E esse descompasso se reflete mais tarde em nossa vida profissional. Enquanto mulher, além de realmente estar, preciso me sentir preparada para assumir determinada posição. Enquanto mulher negra, então, sinto que além de estar 100% pronta, não posso deixar as memórias e o próprio sistema em que vivemos minar ou controlar minha segurança. Esse processo gera dúvida, perfeccionismo, ansiedade, insegurança, autossabotagem. É vital não deixar isso nos paralisar.

O racismo estrutural estabelece uma visão de hierarquia entre as raças, e entre tantos padrões e gatilhos que produz, a sensação irrealista de que a nossa capacidade intelectual possa estar sendo superestimada nos acomete de maneiras diferentes. Essa sensação fica ainda mais forte pela falta de representatividade nos ambientes corporativos, pois na maioria das vezes nos vemos sozinhas. Quantas mulheres negras têm no seu time? Quantas mulheres negras líderes têm na sua empresa? Quantas delas são diretoras? Alguma VP? E uma CEO? O protagonismo feminino negro dentro do ambiente de grandes corporações ainda é muito pequeno. O sentimento de estar remando contra a maré é real. Mas hoje sabemos que não estamos sozinhas e sim ao lado de tantas outras mulheres negras incríveis, navegando nesses mesmos sentimentos, neste mesmo movimento.

Para você, mulher preta que me lê, digo que está tudo bem não estar completamente pronta. Sempre existirão espaços a serem preenchidos. Sempre. Para todos. Mas isso não invalida o que você conquistou até aqui, o domínio que tem sobre o trabalho que realiza e o quão competente você é. Podemos nos permitir esse espaço de aprendizado, mas devemos nos permitir sempre ocupar o espaço que desejamos e que podemos ocupar. O que nos é imposto nessa estrutura complexa não nos define.

Existe um poder transformador que vem das experiências que sobrevivemos, que não pode ser ensinado ou comprado. Entretanto, esse poder traz energia, empatia e uma série de habilidades e táticas que podem ser ouro em nossas vidas profissionais. Nascer uma mulher negra neste mundo já é algo revolucionário, tornar-se negra é algo libertador.

Compartilhe este post em suas redes sociais:

2022 © Todos os direitos reservados por Mooz Soluções Financeiras. Uma empresa do Grupo Boticário. Confira a Política de Privacidade e Termos de Uso.